sábado, 20 de fevereiro de 2010

da biblioteca.

em breve...


Não havia característica que Clarice Lispetor mais quisesse perder do que o local de nascimento. Por essa razão, a despeito da língua que a prendia lá, a despeito da honestidade por vezes terrível de sua escrita, sua reptuação é de ter sido um tanto mentirosa. Mentiras inocentes, como os poucos anos que tendia a subtrair de sua idade, são vistas como coqueterias de uma bela mulher. No entanto, quase todas as mentiras que contou tinham a ver com as circunstâncias de seu nascimento.

Em seus escritos publicados, Clarice estava mais preocupada com o sentido metafísico do seu nascimento do que com as reais circunstâncias topográficas dele. Ainda assim, essas circunstâncias a perseguiam. Em entrevistas, ela insistia que não sabia nada sobre o lugar de onde vinha. Nos anos 60, deu uma entrevista ao escritor Renard Perez, a mais longa que jamais concedeu; o amável e cortês Perez certamente a deixou à vontade. Antes de publicar a matéria, ele a submeteu à aprovação de Clarice. A única objeção que ela fez foi à primeira frase: "Quando, logo após a Revolução, os Lispector decidiram emigrar da Rússia para a América...". "Não foi logo após! Foi muitos, muitos anos depois!", protestou. Perez acatou, e a matéria publicada começava assim: "Quando os Lispector resolveram emigrar da Rússia para a América (isso muitos anos depois da Revolução)...".

E ela mentia sobre a idade que tinha quando veio para o Brasil. Numa passagem já citada aqui, ela usa o itálico para enfatizar que tinha apenas dois meses de idade quando sua família desembarcou. Tinha mais de um ano, porém, como ela bem sabia. É uma pequena diferença - era muito nova, de todo modo, para se lembrar que qualquer outra pátria -, mas é estranha a sua insistência em rebaixar a idade até o mínimo verossímil. Por que se dar ao trabalho?

Não havia nada que Clarice Lispector desejasse mais do que reescrever a história do seu nascimento. Em anotações pessoais redigidas quando estava na casa dos trinta e morando fora do país, ela escreveu: "Eu estou voltando para o lugar de onde vim. O ideal seria ir até a cidadezinha na Rússia e nascer sob outras circunstâncias". O pensamento lhe ocorreu quando estava quase caindo no sono. Sonhara que tinha sido banida da Rússia num julgamento público. Um homem diz que "só mulheres femininas eram permitidas na Rússia - e eu não era feminina". Dois gestos a traíram inadvertidamente, explica o juiz: "1o.: eu acendera meu próprio cigarro, mas uma mulher fica esperando com o cigarro até que o homem acenda. 2o.: eu mesma tinha aproximado a cadeira da mesa, quando deveria esperar que ele fizesse isso para mim".

Então foi proibida de retornar. Em seu segundo romance, talvez pensando no caráter definitivo de sua partida, ela escreveu: "O lugar onde ela nascera - surpreendia-se vagamente de que ele ainda existisse como se também ele pertencesse ao que se perde".

Trecho de "Clarice," de Benjamin Moser

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